6 de dez. de 2010

CORAÇÕES MARGINAIS POESIA E RESISTENCIA

O período de exceção implantado no Brasil pela Ditadura Militar, na segunda metade do século XX, foi marcado por violências de todas as ordens. Queremos tratar aqui da violência do silenciamento e da forma que os poetas encontraram para resistir pela palavra. Os poetas engajados tomaram os fragmentos que emergiam da sociedade, devolvendo à linguagem a sua virtude extremamente metafórica, para romper os silêncios que lhes eram impostos pela censura. O lugar do sonho estava mais do que presente nos poetas. Pairava no ar a esperanç dos brasileiros apropriarem-se do Brasil.
O período de exceção implantado no Brasil pela Ditadura Militar, na segunda metade do século XX, foi marcado por violências de todas as ordens. Queremos tratar aqui da violência do silenciamento e das armadilhas utilizadas pelos poetas para resistirem a tantas arbitrariedades impostas pela Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal.
O perigo externo do comunismo consubstanciou-se em um perigo mais preocupante, posto que muito mais próximo: o "inimigo interno", agente de uma conspiração mundial. A tese do "inimigo interno" foi, ao mesmo tempo, antidemocrática e desagregadora, pois dividiu o País em dois grandes blocos: cidadãos leais e traidores; patriotas e antipatriotas, benditos e malditos, com o esquecimento oportuno e oportunista de que todos eram cidadãos brasileiros.
São palavras do próprio presidente Costa e Silva, quando da edição do Ato Institucional nº 5: "um governo para os virtuosos". Quem eram, então, esses "virtuosos"? é Oliveira quem responde:
O AI-5 concentrou uma gama de poderes no Executivo, mas o Presidente não os utilizará contra os "que nada devem". Os que não subvertem a ordem. Os que não se corrompem (...). "Os patriotas". A força só será utilizada para defender os "interesses maiores da nacionalidade"1
Os princípios que fundamentaram os propósitos do presidente Costa e Silva e a própria continuidade do golpe civil-militar de 1964 foram:Lei e Liberdade! Liberdade e Autoridade! Autoridade e Ordem! Estavam, portanto, desenhados, segundo o governo militar, os novos caminhos a serem trilhados a partir da edição do AI-5: Lei, Liberdade e Ordem. A "liberdade", ancorada na lei, na autoridade e na ordem, acabaria, inevitavelmente, por desembocar no autoritarismo, o que, na linguagem militar, significava manter a "coesão interna".
O presidente Costa e Silva, "ao vivo e em cores", assume com toda a tranqüilidade que a revolução não poderia correr riscos de qualquer espécie. Todas as vezes que fosse prenunciado qualquer tipo de ameaça ao poder constituído, seriam feitas novas "revoluções dentro da revolução". Com essa declaração do presidente, fica claro que, para os militares, em especial os da "linha dura", a revolução trazia em seu bojo um caráter de longa duração.
Dentre as várias formas de resistência possíveis a tudo o que estava posto pelos militares, a arte tornou-se um grande instrumento catalizador do pensamento nacional. Segundo Veronese, " a primeira função da arte é política, é chocar, uma vez que é instrumento para provocar reflexão entre as pessoas"2; ao "chocar" os poderes constituídos, sua possibilidade de reflexão tornou-se uma arma explosiva. O aspecto denunciador, reflexivo e polissêmico das linguagens artísticas fizeram com que elas se tornassem um verdadeiro "caso de polícia", colocadas, portanto, sob a vigilância da Divisão de Censura (não por acaso, vinculada, como já enunciamos, ao Departamento de Polícia Federal).
Esses "corações marginais"3 tomaram os fragmentos que emergiam da sociedade, devolvendo à linguagem a sua virtude extremamente metafórica, para romperem os silêncios que lhes eram impostos. O lugar do sonho estava mais do que presente nos poetas engajados. Pairava no ar a vontade e a esperança dos brasileiros se (re)apropriarem do Brasil.
Nos chamados "anos de chumbo" (1968-1978), por força da censura, criou-se toda uma "geração de malditos" - expressão cunhada e amplamente utilizada pela própria Divisão de Censura, atualizando, dessa forma, o maldito das cantigas medievais de escárnio e maldizer. Nesse período, as vozes dissonantes deveriam ser silenciadas, pois faziam parte do perigoso universo da subversão. Tomemos os versos do poeta Carlos Drummond de Andrade:
Quando eu nasci um anjo torto
Desses que vivem por aí, disse
Vai, Carlos, ser gauche na vida4
A partir da implantação da política do silêncio, que se impunha em todos os meios de expressão, o "anjo torto" drummoniano vai revelar muitos gauches na vida. Eram as vozes dos corações "desafiantes" e "desafinados", ou seja, os poetas que assumiram a poesia como veículo de resistência e que, por isso, se tornaram, aos olhos dos censores, "marginais", "malditos". Eles feriam, pela palavra transgressora, a ordem constituída e isto passou a ser tratado como subversão.
E com o silêncio eu me calei aflito.
E com o rumor me esgoelei sereno.
E ora eu cresci, e ora eu fiquei pequeno
Então pus dentro do silêncio o grito.
E no rumor virei-me o Nazareno.
Foi só depois que eu me tornei maldito.5
Os poetas foram transformados em malditos por assumirem todo um compromisso social e político, exercendo a militância pela palavra. Pinheiro, ao "calar-se aflito", "esgoelou-se sereno" para poder falar apesar do silêncio imposto. Assim como ele, muitos foram os que resistiram, acreditando na possibilidade do amanhã e na força de seu "mal dizer".
Pensar poesia é pensar emoção, envolvimento total. é como que sair de um mergulho com a visão plena da luz. Trabalhar poesia é emaranhar-se no tecido da linguagem. Produzir poesia é ter a consciência da linguagem. é construir verdadeiras armadilhas de palavras.
Os poetas, em especial, principalmente aqueles que cantavam seus versos, - aqui chamaremos de poetas-compositores - tornaram-se malditos, constituindo-se, então, em uma importante parcela dos "inimigos internos", perseguidos por suas vozes e ações dissonantes.
A censura, ao impor aos artistas uma pauta de domínio unilateral, ignorou o poder das palavras e da criação (essas jamais se esgotam), possibilitando, principalmente aos poetas, a busca de novos caminhos de interlocução com seus leitores em potencial. Segundo Bordelois6, a poesia é a tentativa de perguntar às palavras o que somos e nessas tantas perguntas possíveis surgem outros questionamentos que nos fazem ir além do dito. é ainda Bordelois quem nos diz que "a linguagem está antes e depois de nós, mas também está, felizmente, entre nós" e é através dela que se efetivam todos os possíveis diálogos, explícitos ou implícitos.
Os censores, ao colocarem as palavras sob suspeita, pretendiam confiná-las aos subterrâneos dos sentidos oficiais permitidos, porém elas, assumindo sua preciosa liberdade, não se submeteram a consignações e mandatos e explodiram em sentidos outros para além do dito.
é cama de gato
Melhor se cuidar
No campo do adversário
é bom jogar com muita calma
Procurando pela brecha
Pra poder ganhar7
É Gonzaguinha quem declara a necessidade de se jogar com muita cautela no campo do adversário. Quem são, então, os adversários? Justamente aqueles que detinham o poder e que deflagraram uma "guerra interna" sem descansos ou tréguas. Assim estava posto o jogo censor X censurado que vai permear toda a produção musical não só de Gonzaguinha, mas de todos os poetas-compositores que se colocaram na resistência pela palavra, através da Música Popular Brasileira.
Foi construindo pontes - "quando um muro separa / uma ponte une" 8 - que muitos jovens poetas-compositores, assumindo a "linguagem de fresta", conseguiram falar e se fazerem ouvir, apesar da censura. A Música Popular Brasileira, desta forma, lutou dignamente para não sucumbir ao algoz da censura. Jogo perigoso, sem dúvida alguma, de riscos calculados para alguns e de horizontes irrestritos para outros. Impondo-se pelas brechas deixadas e usando diferentes estratégias discursivas como veículos de resistência na luta pela restauração da plena liberdade de expressão, a MPB conquistou um espaço decisivo na luta contra o arbítrio.
Arte alguma, artista algum podem ser lidos e entendidos dissociados do seu tempo. A produção cultural reflete sempre as angústias, as buscas de saídas para conjunturas adversas, da mesma forma que pode refletir alegrias e regozijos, dependendo das condições em que estão postas. O poeta Ferreira Gullar é enfático ao afirmar que "não existe arte que não exprima, direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente, uma ideologia".9
No período em tela - "anos de chumbo" - a produção cultural e artística refletiu a busca de novos caminhos estéticos e políticos. Engajada e extremamente rica, a MPB filiou-se à discussão das questões que assolavam o País, transformando o cantar em uma arma de denúncia e de luta.
A poesia, especificamente neste contexto, ganha a força do dizer, contribuindo para o alargamento do espaço do "dizível". No poema Agosto 1964, Gullar afirma que "a poesia agora responde a inquérito policial-militar".10 Assim, poetas e poesia ficam sob suspeita.
Era urgente dizer-se literariamente o novo - e vieram o Concretismo, a Poesia Práxis, a Poesia Participante, a Poesia Marginal dos anos 70 e tantas outras manifestações, de maior ou menos alcance.11
Nesse panorama de tanta necessidade de dizer e de tantas interdições, os poetas engajados tomam os fragmentos que emergem da sociedade, devolvendo à linguagem a sua virtude extremamente metafórica, para romper os silêncios que se impunham. Assim, a palavra impotente passa a transcender, a transgredir, ocupando o espaço da denúncia, por vezes irônica, mas nem por isso menos impactante.
O poema Maio 1964, de Ferreira Gullar, apresenta-se pleno de denúncia e nos apresenta 1964 com todos os seus índices de violência - "Mas quantos amigos presos! / quantos em cárceres escuros / onde a tarde fede a urina e terror."12 Ao lado do tom de denúncia, de revolta, há expresso todo um direito de construir utopias possíveis. é o direito de todo cidadão que " nenhum ato institucional ou constitucional pode cassar ou legar".13
O poeta apropria-se das vocábulos "cassar" e "legar" para afirmar que os sonhos dos indivíduos não podem ser controlados por atos institucionais, pois fogem a qualquer controle institucionalizado. E é justamente o lugar do sonho que estava mais do que presente nos poetas que tomaram nas mãos a responsabilidade de encontrar formas de resistência. Batista afirma que
(...) na produção musical popular, manifesta[va]-se uma vontade social de se construir a brasilidade enquanto espaço de identidade, mas também um espaço onde se [podia] inventar a utopia de uma terra e de uma gente rica, próspera e feliz, mas que, ao se depara[rem] com a ironia da situação real, sent[iam] vontade de transformá-la.14
Foi por esse desejo de transformação e movidos pelo sentimento profundo de justiça social que os poetas, em especial, assumiram a responsabilidade de "dizer" as "verdades" do seu tempo, tomando nas mãos esse tempo, para tecerem, na escrita, o espaço de (dês)velamento dessas "verdades". Pensar era ameaçador. Expressar-se pela escrita era mais ameaçador ainda. Escrever era, sem dúvida, um ato de libertação, de revelação, de tomada de posição. Eles ousaram, assim, resistir pela palavra. Aqueles jovens, apesar de estarem sob os coturnos da ditadura militar, permaneceram respirando arte brasileira, vivendo um período de grande explosão da música, do teatro, do cinema, da literatura, apesar da repressão e por sobre ela.
é correto dizer que o período da ditadura militar conheceu s valorização da palavra plena de sentido enquanto práxis política. Através dos poetas, a palavra assume eficácia e eficiência revolucionárias. A palavra poética confronta-se, portanto, com a palavra política, assumindo "uma força tal que põe medo no cordão rival"15, nas palavras de Paulo César Pinheiro.
No "cordão rival" de Pinheiro - "Conte comigo no seu carnaval / Tô me guardando contra o mesmo mal / O nosso enredo tem uma força tal / Que já pôs medo no cordão rival"16 - ou no "campo do adversário" de Gonzaguinha - "No campo do adversário / é bom jogar com muita calma / Procurando pela brecha / Pra poder ganhar"17 - estão os representantes do poder instituído.
Podemos afirmar que aqueles que assumem como matéria-prima a palavra trabalham com a relação estreita entre a experiência vivida e a produção textual, mas os poetas vão um pouco mais além. Seus signos estéticos estão intimamente tecidos em seus signos existenciais. Segundo Gullar, "o poeta indaga o mundo através da linguagem e duma linguagem que se propõe ser poesia, essa indagação se reflete como trabalho e sobre a linguagem."18 é, portanto, o mergulho pleno na subjetividade do poeta.
Não há, para o poeta, neutralidade nas ações de quem quer que seja, nem mesmo a música pode ser neutra, pois o não posicionamento implica, sem dúvida, no assumir uma posição diante do que está posto. Assumir uma posição está intrínseco à dignidade do ser pessoa. Fica ratificado, assim, o posicionamento de Ferreira Gullar quando diz que "não existe arte que não exprima (...) uma ideologia."19
Os poetas-compositores que optaram pela resistência através da palavra cantaram, de forma comprometida, "as lutas dessa nossa vida", "as barras pelaí"20 de que tanto nos falou Gonzaguinha. Eles acreditaram na "festa", metáfora tão usada por eles para falarem do por-vir, e "nas flores vencendo canhões."21 Resistiram apesar da censura. é Ana Maria Machado quem nos fala:
(...) esgrimando com palavras diante de um adversário (...) era apenas uma questão de sensibilidade exagerada, percepção aguda voltada para as palavras.22
Sensibilidade que não poderia aflorar em um regime de exceção, por isso era necessário que se esgrimasse com palavras, assumindo um total domínio da linguagem. Buscava-se, assim, as melhores e mais criativas possibilidades para o dizer pleno. Trabalhava-se, portanto, com as armadilhas que a linguagem disponibilizava.Sociedade brasileira de pesquisa histórica

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QUEM NÃO OUSARIA????????

QUEM NÃO OUSARIA????????
COLHER TÃO LINDA ROSA?????

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